sábado, 23 de abril de 2011

Cf - 2011 - O descanso e o sentido autêntico da criação



119. Deus nos dá este mundo para que vivamos numa solidariedade geradora de paz. “No sétimo dia, Deus concluiu toda obra que tinha feito; e no sétimo dia repousou de toda obra que fizera” (Gn 2, 2a). Este dia, o sétimo, se reveste de grande importância no contexto do primeiro relato da criação, pois nele, Deus “concluiu” a sua criação. Desta forma, é no dia chamado de sábado e através dele, que o homem e a mulher vão reconhecer a realidade na qual vivem, como também perceberem-se como criação de Deus. Este dia é chamado de sábado, do qual deriva uma doutrina, que também, ilumina a criação sobre o seu autêntico futuro, pois a abre para a presença da eternidade no tempo, e testemunha o mundo vindouro que está sendo engendrado no hoje.

120. A filosofia moderna criou as bases para o desenvolvimento de uma visão mecanicista da natureza. Através do pensamento de Francis Bacon, desenvolveu o método indutivo que possibilitou a elaboração de princípios gerais das ciências através da associação de elementos particulares observáveis empiricamente. René Descartes trabalhou os conceitos de ideia clara e distinta, que ajudou na observação de fenômenos particulares. Depois estabeleceu a distinção entre a realidade material e a inteligível (res extensa e res cogitans), possibilitando uma mentalidade dualista, que fundamenta o materialismo como consequência da ruptura entre o material e o espiritual e, por fim, desenvolveu o método racional. Galileu Galilei descobriu a órbita dos planetas, que fez com que ele concebesse o universo funcionando como um relógio. Tudo isso contribuiu para uma visão mecanicista do universo, que será desenvolvido até as últimas consequências por Isaac Newton. Nessa visão mecanicista do universo, não há espaço lógico para pensar o descanso da natureza ou para encontrar um lugar na vida humana para a contemplação. Mas não há nada mais estranho ao significado da criação do que o planeta ser entendido como uma espécie de máquina, como na modernidade.

121. Em nossos dias, há muito ficou para segundo plano esta leitura do descanso de Deus, no qual Ele abençoa e santifica a sua obra criada. Damos muito mais valor e sentido à vida do ponto de vista do trabalho e da produção, enquanto que o descanso, a festa, a alegria em viver são desqualificadas como sem serventia e sem sentido. Não é possível entender a criação de modo mais aprofundado, sem perceber o sentido deste repouso. Para as tradições bíblicas estas realidades estão interligadas, pois o repouso é a festa da criação. É em vista desta festa que Deus criou o céu e a terra e tudo o que neles existem. Por isso, na história da criação, sucede-se a cada dia uma noite; o descanso de Deus, no entanto, não conhece noite alguma.

122. Então podemos nos interrogar: o que Deus acrescentou com o descanso às obras da Criação se já a havia concluído no sexto dia? O que ainda faltava para a criação, se já se encontrava acabada? A resposta é o próprio descanso, do qual emergem a bênção e a santificação do sétimo dia, ou seja, Deus conclui a criação com a sua bênção [9]. É do repouso de Deus que emergem a bênção e a santificação do sábado. A obra da criação tem sua conclusão com o descanso do Criador. O Deus que descansa no sétimo dia é o criador que descansa de toda obra que fizera. No dia do repouso, o Criador também se recolhe novamente a si, o que não significa um retorno à existência eterna anterior à criação do mundo e das pessoas, mas deixa de criar e, junto com a sua criação, descansa e a contempla[10].

123. Entretanto, com o descanso, inicia-se a história de Deus com as suas criaturas, com o mundo e do mundo com Deus. Podemos dizer que Deus, não somente descansa de sua criação, mas que este descanso se dá em sua obra, que está diante dele e Ele presente nela[11]. Resulta que no sétimo dia, Deus liga a sua presença eterna com a sua criação transitória, está com ela e nela. Assim, a conclusão da criação se realiza no e com o descanso. A criação se refere à obra de Deus, enquanto o repouso à sua existência presente[12].

124. Pode-se afirmar que a criação revela Deus através de seus seres, mas apenas o repouso é a autorrevelação de Deus. Por isso, as obras da criação desembocam no descanso. No sétimo dia, inicia-se o reino da glória, da esperança e do futuro de todas as criaturas, e o sábado humano, torna-se “sonho de plenitude”[13], dado que esse descanso é indício e antecipação da eterna festa da glória divina. Para que isso seja possível, não podemos dissociar descanso de contemplação do divino, de modo que o descanso aprofunda os relacionamentos entre Criador e criatura e torna-se caminho de santificação e, por isso, o Decálogo exige a santificação do descanso (cf. Ex 20, 8).

125. O próprio Deus mostra o repouso como exigência para a vida humana e para a natureza quanto estabelece o ano sabático e o ano jubilar (cf. Lv 25, 1-22), sendo que o descanso deve ser respeitado não apenas para o ser humano, mas também para toda a natureza. Sem descanso não pode haver nem sequer vida natural de qualidade.

1.4.2. O dia do descanso e a ressurreição de Cristo
126. Nós cristãos entendemos que o sentido original do dia festivo está na celebração da ressurreição de Jesus, fato primordial sobre o qual apoia a nossa fé,[14] ocorrida no domingo. O domingo cristão deve ser visto como a expansão messiânica do sábado de Israel. O domingo, dia festivo cristão, entendido e vivido como o “dia do Senhor” não somente antecipa o descanso do final dos tempos, mas indica o início da nova criação.

127. Segundo a concepção cristã, a nova criação começa com a ressurreição de Cristo[15]. O jardim da ressurreição é o novo jardim do Éden, o lugar da recriação. O casal humano se reencontra num universo que não é o túmulo, mas o jardim, lugar da vida e não da morte. Se o sábado de Israel permite olhar em retrospectiva para as obras da criação de Deus e para o próprio trabalho das pessoas, a festa da ressurreição olha para frente, para o futuro da nova criação. Se o sábado de Israel permite participar do descanso de Deus, a festa cristã da ressurreição permite participar da força que opera a recriação do mundo. Se o sábado de Israel é primordialmente um dia de reflexão e de agradecimento, a festa cristã da ressurreição é primordialmente um dia de início e de esperança.

128. Não é por acaso que o dia da festa da ressurreição é visto pela Igreja como o primeiro dia da semana. Se para Deus, o sábado da criação era o sétimo dia, para as pessoas que haviam sido criadas no sexto dia, o sábado era o primeiro dia que experimentavam.

129. O esquecimento do significado profundo do dia do descanso também proporcionou a estruturação de um mundo sem celebração, de um tempo visto somente pela ótica da produção e do progresso, que gerou desequilíbrios e injustiças. E, dessa forma, prosperou um sistema de produção ancorada na eficiência, crescimento contínuo e na exclusão, com o capital assumindo a função de mantenedor da expansão e voltado para o lucro. Por isso, mesmo neste contexto de crise ambiental, nossa atenção não pode deixar de voltar-se para aqueles ‘descartados’ do sistema produtivo e que passam fome e outras necessidades. Este mundo sem o descanso de Deus, de sua presença, corre o risco de converter-se em fábricas que poluem e de homens e mulheres que atuam em um mercado de trabalho gerador mais de morte, que de vida propriamente.

Fonte: Fonte: Texto Base da CF 2011
Referências:
[10] Cf. Jurgen MOLTMANN, p. 396-397.
[11] Cf. Jurgen MOLTMANN, p. 398.
[12] Cf. Dies D 61.
[13] Cf. Franz ROSENZWEIG, In Jurgen Moltmann, op cit, p. 399.
[14] Cf. Idem 2.
[15] Cf. Idem, 25.















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